sexta-feira, 15 de março de 2013

Capitanias hereditárias: você não quer uma também?

Não é tão simples. É preciso ser malandro. Fingir que é uma coisa, sendo outra. Dar tempo ao tempo para, aos poucos, ir tomando pelas beiradas, dando a sensação, com o passar dos anos, de que o que era de uma forma passou à outra "naturalmente". Criando quase a impressão de que sempre foi assim. E, sobretudo, dar aos companheiros dessa trajetória, parte dos "frutos" da conquista.

Vejam o que se passa na área do Parque do Flamengo, bem público, patrimônio da União por ser acrescido de Marinha, e cedido ao Município do Rio para administrá-lo como bem de uso comum do povo.

Ele foi construído na década de 60, com terras do desmonte de um morro público, com dinheiro público, por funcionários públicos, e decretado por lei patrimônio cultural e unidade de conservação públicos.

Por isso, sendo um parque público é, pelo art. 99 do Código Civil, um "bem de uso comum do povo"*1.  E, como tal, pelo artigo 100 do mesmo Código Civil*2 é inalienável (não pode ser vendido), imprescritível (não pode ser usucapido), e impenhorável.  E, para dar a ele qualquer outra destinação, teria que ter um ato de seu administrador (no caso a Presidente, ou seu agente delegado)  desafetando este bem do uso do povo.

Mas como o esperto faz isso sem "dar na pinta" que está usurpando um bem público, afetado ao uso comum do povo?  Claro que, por enquanto, ele quer só um pedacinho dele. Afinal, por que este povo quer toda aquela imensidão de parque só para lazer ?

Aí é que entra a malandragem. É evidente que não se pode ser claro. A saída é o jeitinho de sempre, desde o Brasil Colônia; toma-se aquele espaço público.  Ups! Sendo justa: no Brasil Colônia eles faziam o que tinham que fazer com clareza, pois não haviam todas estas leis públicas para atrapalhar. Sesmarias eram sesmarias, capitanias eram capitanias ...

Hoje em dia, no entanto, caso se fosse cumprir a lei num parque como o Parque do Flamengo, para que um particular tivesse, regularmente, uma "concessão de terras" - eu, você, ou a uma empresa imobiliária qualquer - teria que cumprir uma série enorme de requisitos legais, dividir a gleba pública em lotes, urbanizar, desafetar do uso público comum do povo, estabelecer índices de uso e ocupação comercial, tirar os gravames de tombamento e de unidade de conservação, licenciar as obras e dar as licenças construtivas de acordo com a lei de edificação e, antes de aforar ou vender, fazer a licitação para quem quiser comprar oferecer o melhor preço.

Mas, os espertos não fazem assim.  Compram um contrato, cujo objeto é o de administrar uma Marina Pública e, aos poucos, vão dizendo que, para administrar uma Marina é preciso, é necessário, é imprescindível, para o desenvolvimento econômico daquela atividade e para o bem do povo, que a tal marina pública tenha um Centro de Convenções, quase oitenta lojas, áreas de festas e eventos, vias e pontes de acesso, mais estacionamento de veículos, e o que vier aparecendo... E assim, de mero administrador de uma Marina Pública ele vira "concessionário da área", antes pública de uso comum do povo - como que por transmutação temporal*3. 

Depois de tudo mais ou menos "aprovado", entra o marketing do novo projeto de "revitalização" da novel capitania, para convencer ao "povo" quão bom será para os antigos donos concordar em dar um pedacinho de suas "maltratadas terras" ao benemérito que levará o desenvolvimento econômico àquelas glebas "antes tão degradadas". 

E assim, o povo pasmo, antigo dono daquelas terras pelas quais pagou, e delas usufruía como sua, assiste uma mutação do público em privado, sem que para isto seja necessário o cumprimento de uma linha da lei escrita.  Para uns - e eles sabem disto - cumprir a lei é coisa para o povo.  Para esse outros não: basta apenas ser mui amigo dos falsos reis, e deles receber suas novas capitanias, fazendo-as hereditárias, no futuro, só para os seus! 

E la nave va...
*1  Art. 99. São bens públicos:
I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
*2  Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.
*3
"CAU/RJ e IAB-RJ promovem debate sobre o Projeto Rio Marina da Glória
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU/RJ) e o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) convidam para a apresentação do projeto Rio Marina da Glória pelo seu autor, arquiteto Indio da Costa, no próximo dia 20 de março.. Na ocasião, será debatido com arquitetos, urbanistas e demais profissionais, as questões que envolvem um projeto de grande porte em área pública, e suas consequências urbanísticas, paisagísticas e ambiental. Este projeto foi solicitado pela REX, empresa de desenvolvimento imobiliário do Grupo EBX, que  detêm a concessão da área, cujos representantes também estarão presentes. O encontro é aberto ao público e será na sede do IAB-RJ. Este debate com as entidades profissionais e a sociedade é fundamental para garantir a transparência das ações de intervenção na paisagem da Cidade.
Palestra Projeto Rio Marina da Glória Dia 20 de março 18h IAB-RJ – Rua do Pinheiro, 10 – Flamengo."
(grifos nossos)

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